Tá de greve? então tá tranquilo…

Greve

Infelizmente, as pessoas de fora do contexto das universidades públicas não têm a exata dimensão sobre o que é o trabalho de um professor. Para falar a verdade, até mesmo dentro do nosso contexto há pessoas que desconhecem o que fazemos de fato. Como somos antes de mais nada professores, e somos contratados para sermos professores, a ideia dominante é a de que só damos aulas e nada mais. Daí vem a ideia errada de que, se entramos numa greve e os alunos voltam para suas origens por uns tempos, nós não temos mais nada para fazer, e ficamos tranquilos esperando a greve acabar. Ou porque alguma solução de consenso foi encontrada, ou porque tomamos uma ferrada do nosso patrão e voltamos às atividades com o rabo entre as pernas. O que não é muito dificil de acontecer no contexto atual.

O fato é que, associadas com a nossa nobre função de professor, temos ainda um monte de outras funções que temos que desempenhar, e das quais dependem a nossa sobrevivência acadêmica e científica. Somos também orientadores de alunos de graduação em projetos de iniciação científica que visam à formação de futuros pesquisadores. Somos orientadores de alunos de mestrado e doutorado em seus projetos de pesquisa que têm prazo certo para terminar (24 meses para o mestrado e 48 meses para o doutorado, com pequenas possibilidades de prorrogação). E somos também orientadores de alunos de graduação em projetos de finalização de curso, o que acontece também com orientação de alunos de cursos de pós-graduação lato-sensu com suas monografias.

Temos que levar os alunos orientados a publicar alguma coisa de seus projetos, seja no nível de graduação, mestrado ou doutorado, e ai somos cobrados fortemente pela Capes, não adianta publicar em qualquer evento ou veículo, há fortes exigências quanto a isso. Um bom artigo, para ser publicado em um journal (revista científica) que tenha credibilidade e dê visibilidade ao artigo, leva pelo menos seis meses para ficar pronto e redondo para submissão. Isso se ele for aceito de cara, senão entra-se num longo processo de correções e acertos, e ai o tempo passa para um ano, seguramente. A sobrevivência dos cursos de mestrado e doutorado dependem quase que exclusivamente destas publicações de qualidade em bons veículos.

Ainda não acabou! Para suportar e financiar as atividades de pesquisa, comprar material e equipamentos, pagar viagens de alunos e nossas para participar dos congressos onde temos artigos aceitos, temos que submeter e aprovar projetos atendendo a chamadas de editais dos órgãos financiadores, como o Cnpq, as Fapxxxx (no nosso caso de Minas Gerais, a Fapemig), e outras agências. Essas viagens ficam carissimas, e muito ao contrário do que os de fora do contexto imaginam, são viagens cansativas, de trabalho, usadas para estreitar laços de cooperação e de trabalho com grupos de outros paises ou estados brasileiros. Somente em aeroportos, perde-se seguramente um dia inteiro ou até mais que isso, dependendo do destino. O tempo de aeroporto é gasto com laptops ligados, revendo detalhes das palestras e dos artigos a serem apresentados, não há descanso. Ficamos normalmente hospedados em hotéis três estrelas ou menos, que são os que os recursos permitem pagar. Claro, nessas viagens a gente tem que comer alguma coisa, e aproveitamos os almoços (sanduiches)  e principalmente os jantares para fazermos a parte social das conversas e parcerias. Nunca, em momento algum, o recurso oficial que a gente consegue para financiar a participação em um evento desses é suficiente, e regularmente temos que gastar recursos próprios, dos nossos salários, para financiar parte das viagens.

E na volta, depois de uma semana, temos uma avalanche de trabalhos que ficaram parados, aulas para repor, alunos para atender, trabalhos para terminar, relatórios para fazer e devolver, prestação de contas das viagens que devem ser bem feitas senão a auditoria pega no nosso pé, um zilhão de mensagens nos inbox esperando para ser respondidas (a maioria tem que ser respondida), bancas de defesas para fechar, mais viagens para participar de bancas em outras universidades, etc. E lá se vão as noites e finais de semana seguintes!

No meu entendimento, a greve é uma época de muita tensão e um recurso extremo a que temos que recorrer, para conseguir chamar atenção dos nossos patrões federais, que normalmente dão pouca bola para as reclamações, não cumprem as promessas se não fizermos pressão. Ninguém fica feliz por estar em greve, pois estamos apenas adiando atividades que poderiam estar sendo terminadas agora, vamos ter que trabalhar em periodo que seriam de férias regulares para repor aulas, etc.

E a greve atual é justa? As condições de trabalho estão bastante deterioradas, estamos recebendo muito mais alunos sem a devida correção no número de docentes e estrutura. Nosso plano de carreira está completamente ultrapassado, o governo anterior deu algumas esmolas na forma de correções salariais esporádicas, conseguindo manter todo mundo quieto. Mas, a reforma da carreira que é fundamental não foi feita, e ainda conseguiram piorar criando mais uma classe entalada, atrapalhando mais do que ajudando. E no governo anterior ao anterior, foi um desastre total, nem migalhas recebemos como correções. Felizmente, na greve atual, estou até vendo apoio da sociedade, o que nunca consegui perceber em greves anteriores. Em outros paises (já vivi essa experiência que nunca esqueço)  o professor ocupa lugar de destaque na lista das profissões mais respeitadas.

Aos que conseguirem ler essa longa postagem até o final, espero ter contribuido para mudar a visão e o entendimento do que significa uma greve do corpo docente de uma universidade pública.

(este artigo foi escrito por zeluisbraga, e postado no meu blog zeluisbraga . wordpress . com) (this post is authored by zeluisbraga, published on zeluisbraga . wordpress . com)

Consultor Independente, Treinamento Empresarial, Gerência de Projetos, Engenharia de Requisitos de Software, Inovação. Professor Titular Aposentado, Departamento de Informática, Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Brasil. Doutor em Informática, PUC-Rio, 1990. Pós-Doutoramento, University of Florida, 1998-1999

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Publicado em Reflexões, Social, ZeRaivoso
7 comentários em “Tá de greve? então tá tranquilo…
  1. joaneslucio disse:

    Zé Luis, as nossas autoridades e a nossa sociedade ainda não acordaram para a necessidade de se valorizar a Educação, a Pesquisa Científica e a Tecnologia para que esse país possa se tornar de fato uma Nação…

  2. Luiz disse:

    Sem contar que professores ainda tem tarefas administrativas, como colegiados, comissões, que gastam tempo e energia. E, além disso, são avaliados também por atividades de extensão (cursos, transmissão de conhecimento para a sociedade,etc.).
    Eles tem que ser valorizados porque possuem um efeito construtivo multiplicativo na sociedade, formam cidadãos que formarão cidadãos.
    Outra coisa é que para publicar em um evento internacional estamos competindo com países que valorizam a pesquisa, educação e investem muito mais que o nosso.

  3. Lilyan Luizaga disse:

    Alem das responsabilidades trabalhistas, o professor tem que cuidar de sua saúde, vamos aproveitar tambem de fazer um check up medico!

  4. Evaldo disse:

    Belíssima reflexão, quer nos deixa com mais certeza de que somente teremos professores valorizados quando soubermos o que queremos ser enquanto nação, enquanto povo!

  5. Perfeito Ze Luis.
    Voce ja deve ter ouvido a pergunta infame: “Voce so da aula ou trabalha tambem?”. Quem faz esta pergunta e porque consegue enxergar tao somente a ponta do iceberg desta nossa nobre missao.

  6. Saudades… Isso mesmo. Pode parecer estranho essa palavra, mas é isso mesmo que eu sinto. Sinto saudades de um professor da então 8ª série na cidade de Ervália (1983) dando aula de química (sua especialidade era matemática) me possibilitou passar no COLUNI e prosseguir minha carreira na área da Computação. Tenho saudades sim dos idos de 1989/1990 onde tínhamos nas greves dos professores o apoio irrestrito dos alunos e funcionários da UFV e esperança de dias melhores na Educação Brasileira.

    Pena que ao que parece pelo depoimento desse nobre professor a situação se mantém até hoje.

    Parabéns Zé Luiz por ser Brasileiro e consequentemente não desistindo nunca.

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